Repensarmos o medo: politizar a segurança

Não cabe dúvida que importantes acontecimentos, com especial destaque para os ataques atribuídos ao terrorismo jihadista nos EUA e na Europa, têm colocado o medo e a insegurança na agenda política da totalidade dos países ocidentais, bem como no centro das notícias dos principais meios de comunicação (Jackson et al., 2011). Igualmente, resulta já uma questão pacífica considerar que tal estado de alarma estaria pondo em causa o normal funcionamento das instituições e das práticas democráticas de boa parte desses Estados. Para os diferentes autores, aquilo que vivemos é um processo de tensão entre a defesa da normalidade e as garantias democráticas construídas desde a II Guerra Mundial, virando face condutas estatais certamente autoritárias sobre as próprias populações (Agamben, 2004; Paye, 2008; Lopez-Petit, 2003). Para compreender este processo, que longe de ser um caso isolado, se trata de um contexto global generalizado, devemos pegar no conceito de “securitização”.

Liñas de investigación Relacións Internacionais
Apartados xeográficos Outros
Idiomas Portugués

Não cabe dúvida que importantes acontecimentos, com especial destaque para os ataques atribuídos ao terrorismo jihadista nos EUA e na Europa, têm colocado o medo e a insegurança na agenda política da totalidade dos países ocidentais, bem como no centro das notícias dos principais meios de comunicação (Jackson et al., 2011). Igualmente, resulta já uma questão pacífica considerar que tal estado de alarma estaria pondo em causa o normal funcionamento das instituições e das práticas democráticas de boa parte desses Estados. Para os diferentes autores, aquilo que vivemos é um processo de tensão entre a defesa da normalidade e as garantias democráticas construídas desde a II Guerra Mundial, virando face condutas estatais certamente autoritárias sobre as próprias populações (Agamben, 2004; Paye, 2008; Lopez-Petit, 2003). Para compreender este processo, que longe de ser um caso isolado, se trata de um contexto global generalizado, devemos pegar no conceito de “securitização”.

A segurança, como já assinalou Buzan faz mais de vinte anos (1991: 370), é uma ferramenta essencial para reclamar a atenção de elementos prioritários para a governança. Neste sentido, grande parte da teoria e prática securitária têm encontrado um perfil conservador no intuito por preservar a normalidade, bem como impedir qualquer mudança radical ou profunda da sociedade. Porém, o que percebemos por segurança dificilmente encontra encaixe numa descrição técnica, neutral ou asséptica. Ao contrário, a noção de segurança é substancialmente subjetiva, elástica e controvertida (Booth, 2007; Buzan, 1991). Definir, deste modo, as ameaças ou os riscos, bem como as medidas que os governos devem implementar, é fulcral para uma sociedade, e não podem resolver-se em abstrato sem aceitarmos a sua conceição como conflituosa. Por citarmos apenas um exemplo, que os EUA conceba como um problema para a sua segurança a existência de armas de destruição massiva no Iraque, e não senta esse risco na Índia, tem a ver, fundamentalmente, com uma determinada definição da segurança.

Aproximando uma perspectiva crítica

Neste sentido, a denominada Escola de Copenhague de estudos da segurança assinalou como central a exploração e verificação dos processos pelos quais se elabora o registro de ameaças e riscos dos Estados. Pois desde a perspectiva geopolítica, a segurança tem sido percebida sempre como a “segurança do Estado”, ou em termos jurídicos a “segurança nacional”, como eixo das políticas de interior e militar dos diferentes Estados. Concretamente, tais autores vão sinalar os diferentes agentes que dirimem sobre uma determinada ameaça, desde o seu objeto e os seus sujeitos, advertindo para a transferência existente entre a perspectiva securitária e o poder político (Buzan, Wæver e Jaap de Wilde, 1998). Noutras palavras, a posta em andamento de uma extensa série de dispositivos de segurança encaminhados a proteger-se do terrorismo, e não de outro tipo de ameaças de caráter social ou económico, responde às necessidades de Estados, grupos e organizações particulares que constroem a agenda das ameaças. A segurança é, por consequência, uma construção social (Fierke, 2007) que designa “amigos” e “inimigos” (Schmitt, 1998), e sobre a qual se ergue a sua arquitetura.

Então, acontecimentos como o 11 de setembro de 2001 nos EUA, ou os mediáticos ataques terroristas dos últimos anos em Europa, atuam como verdadeiros transmissores de pânico social (Cohen, 1972), abrindo passo à securitização das relações entre o Estado e as suas populações. E sem por isso infravalorizar os mais de 3.000 mortos dos atentados de Nova Iorque ou os mais de 300 mortos em França, Bélgica, Reino Unido ou España, essa mesma cifra morre praticamente ao dia por enfermidades evitáveis na África Subsaariana, por nomear um exemplo bem palpável. A segurança é, pois, um conceito político e as ameaças e os riscos são construções derivadas dessa mesma concepção política da realidade e das suas necessidades de reprodução. Assim sendo, para os estudos críticos da segurança, a Critical Theory (Bilgin, Booth e Jones, 1998), os discursos e práticas securitárias respondem sempre às relações de poder estabelecidas. Conquanto, uma aproximação desapaixonada à centralidade que ocupa, entre outros, o fenômeno terrorista como problema central da segurança nacional e global, aquilo que mostra é a grande sobrerrepresentação no palco internacional, quando não umas gravíssimas consequências para a eventual estabilização do status quo, como aconteceu com a chamada “Guerra Global contra o Terrorismo”, através da generalização da tortura, o abuso e as detenções arbitrárias (Paye, 2008).

Impugnação das narrativas da segurança

Refutar esta percepção da segurança vira, para tanto, numa prioridade capital para a consolidação de um verdadeiro marco democrático de direitos e liberdades. O recurso ao medo e ao pânico por parte dos Estados, com base na ameaça terrorista por apontar a mais gravosa, está acarretando a tomada de medidas de recorte de liberdades que, dificilmente, poderiam ser acordadas noutras circunstâncias. Assim, sob uma focagem de figurada objetividade os meios de comunicação, os governos, os peritos em matéria de segurança, os tribunais ou as burocracias elaboram uma estrutura discursiva que substitui o debate político sobre o terrorismo por um fato empírico incontrovertível (Jackson et al, 2011; Spencer 2010). A definição de terrorismo, então, é a identificação de um radical “inimigo” da normalidade, que emerge como uma ameaça absoluta e inquestionável.

Por consequência, a segurança deve ser um conceito a disputar. Em opinião de Booth (2005), a segurança não pode ficar apenas nas mãos das elites estatais e peritos como se de um problema neutro de gestão eficiente se tratar; mas, ao invés, ele deve ser “(re)politizado” pela sociedade, discutido e repensado dentro do conflito político antagonista inerente à democracia. Aquilo que entendemos por segurança e as suas ameaças para o devir sobre questões como o terrorismo, a migração ou os crimes econômicos transnacionais (Bigo, 2002). Politizar a segurança constitui, em suma, impugnar um determinado relato empírico, histórico e político da realidade com o objetivo de legitimar determinadas relações de poder através da construção de ameaças como forma de balizamento da normalidade num crescente Estado de incerteza e precariedade (Bauman, 2004; Wacquant, 2010).

Mais ainda, impugnar a noção de segurança implica por em causa o aparato penal em expansão que introduz em campos como o social, o político ou o econômico uma lógica de controlo e vigilância. Em síntese, um “habitus securitário”, conformado por discursos e práticas que formalizam a limitação de garantias essenciais do sistema democrático na procura de uma descrição da normalidade encaminhada a reproduzir a própria ordem social e política geradora desta situação. Por isso, discutir a segurança, a securitização, é questionar um determinado exercício do poder que cria sujeitos, categorias e fronteiras para modelar e perpetuar a erosão dos direitos e liberdades públicas.

 

Bibliografia

Agamben, G., “El Estado de exepción es hoy la norma”, em ElPaís, 03/02/2004.

Bauman, Z., La sociedad sitiada, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2004.

Bigo, D. ‘Security and immigration: toward a critique of the governmentality of unease’, em Alternatives, 27 (2002), pp. 63–92.

Bilgin, P., Booth, K. e Jones, R.W., “Security studies: the next stage?”, em Nação e Defesa, 84(2) (1998): 129–157.

Booth, K. “Critical explorations”, em Booth, K., Critical Security Studies and World Politics, Boulder: Lynne Rienner, 2005.

Booth, K., Theory of World Security, Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

Buzan, B., People, States and Fear: An Agenda for International Security Studies in the Post-Cold War Era, Londres: Harvester Wheatsheaf, 1991.

Buzan, B., Wæver, O. e Jaap de Wilde, Security: A New Framework for Analysis, Boulder: Lynne Rienner, 1998.

Cohen, S., Folk Devils and Moral Panics, London: MacGibbon & Kee, 1972.

Fierke, K. Critical Approaches to International Security, Oxford: Polity Press, 2007.

Jackson R., Jarvis L., Breen Smyth, M. e Gunning J., Terrorism. A critical introduction, New York: Palgrave, 2011.

Paye, J.C., El Final de Estado de Derecho, Hondarribia: Hiru, 2008.

López-Petit, El Estado Guerra, Hondarribia: Hiru, 2003.

Schmitt, C., El concepto de lo Político, Madrid: Alianza Editora, 1998.

Spencer A., The tabloid Terrorist, London: Palgrave MacMillian, 2010.

Wacquant, L., Castigar a los pobres: el gobierno neoliberal de la inseguridad ciudadana, Barcelona: Gedisa, 2010.