ARTIGO QUE FAZ PARTE DO ESPECIAL "OGALUS: LUSOFONIA" POLO DÍA MUNDIAL DA LINGUA PORTUGUESA, 5 DE MAIO DO 2023
Ogalus - Especial Lusofonia 2023

A força do galego e das estratégias lusófonas no Tik Tok: Dígocho eu e o público brasileiro

Que a lusofonia é uma promissora estrada de tijolos amarelos para a manutenção, a visibilidade e o reconhecimento da língua galega isso é indubitável, e esse tema ficou em evidência com a recente entrada da Espanha na Comunidade de Países de Língua Portuguesa, como membro observador associado (2021). Mas, diferentemente de Dorothy e de seus companheiros no livro O mágico de Oz (1939), essa estrada apresenta bifurcações e os galegos parecem estar se dando conta de que há muitos outros caminhos dentro dos conceitos da lusofonia e da Galeguia para encontrar/criar o seu destino.

Muitas expectativas foram acumuladas desde a implementação da iniciativa legislativa popular, a Lei nº 1/2014, conhecida como Lei Valentín Paz-Andrade, que cumprirá dez anos no ano próximo sem colecionar um repertório significativo de frutos para concretizar “o aproveitamento da língua portuguesa e de seus vínculos com a lusofonia”, proposta e premissa desde a sua instituição. Contudo, outros tantos setores culturais bebem desses elos telúricos com Portugal que vêm sendo restituídos e reformulados nos últimos anos, todavia o verdadeiro mérito de todos esses empreendimentos e de seus responsáveis e colabores é justamente terem alargado o seu campo de visão e percebido que a lusofonia não é um percurso que os leva somente até o seu vizinho, estimado e íntimo, Portugal, mas também ao Brasil. A metáfora da ponte atlântica, tão difundida nesta esfera lusófona, é quase literal para nós, estudantes de galego no Brasil. O nosso caminho é por mar, não tanto pela estrada de tijolos, e sim pelas varandas marítimas, como a própria mãe da literatura galega moderna, Rosalía de Castro, sugeriu nos versos que adornam a obra fundante, Cantares Gallegos (1863): ”Si a mar tiverabarandas. Forate ver o Brasil; Máis a mar non ten barandas, Amor meu, por donde heid’ir?”.

Um grande exemplo disso é a aposta que o programa Dígocho Eu tem feito nessa ponte atlântica e também na nova rede social do Tik Tok. Dígocho eu é um programa de cunho didático e de caráter humorístico sobre a língua galega e que goza da assessoria linguística de Rocío Pérez. O Dígocho Eu foi transmitido pela primeira vez em janeiro de 2020 pelo canal galego, TVG, mas que se popularizou surpreendentemente no Tik Tok, ganhando diariamente um quantitativo relevante de visualizações e curtidas. Sucesso esse que se deve ao carisma da jornalista e apresentadora Esther Estévez, e ao dinâmico e bem estruturado roteiro do programa escrito por ela e também pelo idealizador e diretor, Carlos Amado, quem está sempre dinamizando e inovando os quadros.

Não é por casualidade que recentemente o programa foi agraciado com dois importantes prêmios: em 2021 o Dígocho Eu recebeu o Prêmio de Cultura Galega na categoria Língua Galega e no ano de 2022 Esther Estévez e o programa concorreram e venceram em duas diferentes categorias no prestigioso Prêmio Mestre Mateo, as categorias de melhor programa e melhor apresentadora. Atrevo-me a dizer que desde a Xeración Xabarín não vemos um fenômeno tão exitoso de promoção do galego entre o público infantil e juvenil como o Dígocho Eu, que consegue abordar assuntos que consomem as gramáticas e os defensores da normativa galega por meio de uma linguagem divertida, da presença nas redes sociais e de outros recursos como participação e ação de Esther nas trendse nos challengesno Tik Tok, o seu trabalho nas escolas galegas, e, especialmente, pelo personagem criado pelo programa, o Digochiño. Digochiño é “uma raposa muito jeitosa que gosta de aprender” e que ensina o galego por meio de músicas e de pequenas esquetes, que duram menos de três minutos, das quais participam Digochiño, Esther e a senhora Virtudes, a vizinha mal-humorada que insiste em chamar a raposinha de cão, performada por María Foscaldo, outra grande joia do galego nas redes sociais com grande apelo popular.

Para quem acompanha o programa desde a sua transmissão original, fica nítido o interesse que o Dígocho Eu sempre demonstrou em relação a Portugal e ao Brasil e como essa linguagem jovial, espontânea e rápida foi sendo incorporada nos vídeos destacados que eram postados ou recortados de programas maiores e que acabaram por rechear a foryou do Tik Tok. Num vídeo fundamental e bastante extrovertido, publicado no dia 27 de janeiro de 2021, a apresentadora Esther explica o uso e as matizes das formas “Galicia” e “Galiza”, e no seu discurso, assim em diversos outros vídeos, a jornalista faz questão de comentar como nós, brasileiros, interagimos com esses nomes. As bandeirinhas de Portugal e de Brasil passaram a ser recorrentes nesses vídeos, as dúvidas sobre as formas usadas na nossa variante de português também e, desde então, Dígocho eu abriu uma das possíveis portas da lusofonia: as varandas rosalianas.

No ano de 2021, de forma natural, o programa incorporou esse interesse de maneira mais explícita ao roteiro e aos assuntos selecionados nos vídeos, e num vídeo publicado em maio do mesmo ano, Esther apresentou o ator português, Rodrigo Paganelli, que se uniu ao quadro “Apuntamentos lusófonos”, no qual Esther se dedica a encontrar as similitudes e explorar as diferenças entre o galego e o português de Portugal. Entre risadas, dúvidas linguísticas e choque cultural, o programa trilhou um caminho lusófono que me trouxe até o texto que aqui escrevo.

Esses vídeos passaram a ser comentados e repostados por muitos brasileiros que, em sua maioria, estavam tendo, através de Esther, contato com o galego pela primeira vez. A surpresa por entenderem tão bem o galego de Esther quanto entendiam o português lisboeta de Rodrigo fez com que essa porta metafórica que estamos aludindo frequentemente neste texto deixasse de ser unilateral. Eram tantos comentários e participações de brasileiros nestes vídeos que, neste ano, o quadro “Apuntamentos lusófonos” foi retomado em janeiro deste ano, mas dessa vez com a companhia da jornalista portuguesa, Márcia Silva Gonçalvez, que se uniu a Esther como jurada e comentarista de um concurso que tem mobilizado muitos brasileiros, “O concurso do mais fofinho” que vai ao ar todas às quartas-feiras entre às 16h/17h, do horário brasileiro,

O concurso foi anunciado no 16 de janeiro de 2023 por meio de uma chamada em que Esther Estévez parodiava a música “Tubarão, te amo”, ritmo de funk que foi um grande hit no último ano viralizou no Tik Tok com uma coreografia difundida na internet. O concurso foi batizado de “Fofinhos”, pois o primeiro estranhamento linguístico foram os muitos comentários que Esther recebeu por parte dos brasileiros que a consideravam uma apresentadora muito “fofinha”, expressão que no Brasil significa alguém cuja personalidade é gentil, doce, tenra, palavra equivalente a “riquiño”, “feitiño”, emgalego.

O programa recebeu 400 candidaturas de brasileiros que precisavam apenas justificar por que gostariam de conhecer a Galícia para, então, ganharem 1.200 euros para serem gastos numa viagem a Santiago de Compostela, onde poderão conhecer a Esther pessoalmente e gravar um vídeo com ela, além de desfrutar dos encantos de se estar na Galícia. Assim como nos torneios futebolísticos, o concurso conta com etapas eliminatórias que acontecem com a participação dos candidatos em quizzes, entrevistas e jogos on-line que são transmitidos pelo Twitch às quartas, na TVG às segundas e aos sábados esses vídeos são replicados no YouTube e nas redes sociais do programa. A previsão é que em maio, dentre estes 15 candidatos selecionados, conheçamos, por fim, o ganhador, escolhido pelo júri composto pela dupla apresentadora, pelos participantes do chat e pelos convidados especiais que surgem a cada semana. O sucesso dessa investida é tanto que os vídeos dos “fofinhos” bateram 1,1 milhões de visualizações no Tik Tok.

A penetração do galego nas redes sociais e o seu apelo ao público lusófono soa surpreendente, entretanto, nós, pesquisadores da língua, reconhecemos que isso é fruto de um trabalho de muitos anos e que nos foi deixado de herança pelos principais intelectuais da língua galega. Notamos o interesse que os galegos tinham na lusofonia, mas é a primeira vez que nos sentimos convidados também ao debate de forma tão direta, espontânea e aberta. De maneira tímida, mas potente, vemos o galego marcar diversos marcos como o de ter uma série em idioma no catálogo da Netflix e em outras
plataformas de streaming; de percorrer o mundo pelo Spotify com as canções das Tanxugueiras, grupo que participou da Eurovision e que mobilizou meio mundo para que se fizessem vencedoras deste grande concurso musical; e, agora, vemos o Tik Tok, uma rede utilizada principalmente por um público jovem (faixa etária que pareceabandonar cada vez o galego), ser palco de mais um passo que o galego dá em direção à galeguia e à sua internacionalização.

O futuro do galego segue sendo incerto, o consenso no asseio da discussão a respeito da lusofonia, da normativa e do reintegracionismo parece um horizonte alcançável que nos repele, porém já entendemos que o galego pode e deve ocupar todos os espaços que lhe foram negados nos “600 anos de represión contra o noso”, como canta Dios Ke Te Crew. Ainda há gente em cima do muro quando são chamadas a responder àquela pergunta feita por Ricardo Carvalho Calero, quando, em realidade, não parece haver dúvidas que a justifiquem mais, o galego é galego-português. A metáfora d’ O mágico de Oz não foi fortuita, todas as vezes que vejo o galego ser abraçado e acolhido pela lusofonia a sensação é a mesma que tomou Dorothy e a sua trupe: tudo que o galego precisa ser para sobreviver ele já é e sempre foi, e a lusofonia é só um dos caminhos para ele voltar à casa. Os demais caminhos, os falantes irão nos dizer à medida que continuarem a falar, dia após dia, a língua própria e natural da Galiza.

ARTIGO QUE FAZ PARTE DO ESPECIAL “OGALUS: LUSOFONIA” POLO DÍA MUNDIAL DA LINGUA PORTUGUESA, 5 DE MAIO DO 2023